Resenha Semanal

29 de março a 5 de abril de 2019. A disputa narrativa do golpe de 1964 tomou conta do noticiário pleno de insultos à democracia. Uma pouquinha luz brilhou a partir do exterior.

A semana abriu com a notícia na direita que espionagem e grampeamento em larga escala acontecem em Brasília. Integrantes do Legislativo, do Judiciário e até mesmo do Executivo suspeitam que estejam sendo grampeados ilegalmente. Dada a proximidade do Sínodo sobre a Amazônia, até os bispos desconfiam.

Sabe-se lá que equipamento o presidente vai trazer de volta do maior laboratório de vigilância e repressão do mundo: a Palestina ocupada por Israel.

O próprio STF, na figura do ‘inquérito combo’ aberto por Dias Toffoli, estaria ativo nesta guerra, com sua investigação algo mal definida das “injúrias e ofensas contra magistrados”. Ele montou seu próprio “núcleo de inteligência”, com a convocação, por Alexandre de Moraes, de dois delegados de São Paulo.

Potencialmente, o STF pode atingir as redes bolsonaristas e lavajatistas. Toffoli deve saber que um ataque decisivo contra o STF teria que estar acompanhada, além do cabo e do soldado no jipe, de mobilizações nas ruas, só obtidas com impulsionamento digital.

Por outro lado, o mesmo Toffoli disse que os presidentes dos três poderes conversam para desenhar “um pacto republicano para destravar o país“, “enxugando” a Constituição. De acordo com ele, trata-se de um conjunto de reformas pensadas para diminuir a burocracia e aumentar a eficiência das instituições. Sem Constituinte.

Fagulhas conspiratórias faíscam em Brasília. A prisão de Temer e reações de Maia fizeram a temperatura política subir. A hipótese da criação de caos por Bolsonaro para que ele ou outra força intervenham, decretando Estado de Sítio, ainda parecia viável hoje.

Mas o que dominou o cenário político foram as efemérides de 1964.

Muita disputa narrativa acerca do golpe. Bolsonaro ordenou que o golpe fosse celebrado na ordem unida dos quartéis em todo o país. Uma juíza proibiu isso, e vários grupos acionaram diferentes instâncias para confrontar a reescrita mentirosa da história e a celebração pelo Estado do ato anti-republicano que foi o golpe. Foi um vai e vem determinações e contradeterminações.

Resultado: os militares fizeram suas cerimônias na sexta-feira com um texto menos militante, mas mesmo assim revisionista e pró-ilegalidade. Bolsonaro recuou e disse que queria “rememorar” e não celebrar o golpe. Gilmar Mendes negou o pedido feito por parentes de vítimas da ditadura e pelo Instituto Vladimir Herzog, com uma justificativa muito escrota.

31 de março

O Palácio do Planalto divulgou um vídeo negando que houve um golpe de Estado no Brasil em 1964. Um ator faz a sua fala tendo ao fundo de uma bandeira brasileira. A Secretaria de Imprensa da Presidência não soube dizer quem enviou o vídeo para o canal. Também diz que o governo não produziu o vídeo nem soube dizer quem o fez.

Fiquei muito perturbado. Não foi só o insulto e inconstitucionalidade da divulgação, mas isso de ninguém saber quem foi… e ficar por isso mesmo! Tétrico, parece que não tem limite para a maldade deles – e a sociedade não está reagindo.

Liberais e democratas que tanto republicanismo exigiram do PT, agora se calam. A hipocrisia da imprensa é gritante, não apenas porque apoiaram o golpe em 1964, mas também agora não defendem a democracia.

Vários atos e manifestações contra o golpe aconteceram em São Paulo. Só pude ir à Paulista, um ato puxado mais pelo PCO.

Fotografia: Alice Vergueiro: Marcha do Silêncio
Fotografia: Alice Vergueiro: Marcha do Silêncio
Fotografia: Alice Vergueiro: Marcha do Silêncio

Foi bom ver as pessoas juntas na rua. Mas a minha sensação foi a mesma de E, que foi ontem no ato da rua Tutóia e hoje no Ibirapuera: “foi bonito e emocionante, mas esperava muito mais gente”. De fato, senti muita falta de presença massiva da sociedade.

Parece que a sociedade está sinalizando que não se importa: aceitou o Estado de Exceção em 1964 e vai aceitar de novo hoje.

O ato da Paulista tinha umas 600 pessoas, com microfone mas sem carro de som. Muito Lula Livre e militantes do PCO. Fiquei umas duas horas e segui a pé para casa. No caminho, passei pela FIESP onde uns 15 coxinhas comemoravam o golpe, com balões e um bolo.

Quando cheguei, já tinha gente batendo boca com eles. Umas 3 ou 4 mulheres coxinhas (uma delas em cadeira de rodas) discutiam com outras tantas na rua. Em volta, umas 100 pessoas olhando e filmando. A coisa conflagrou e teve agressão física. A mulher da cadeira de rodas saiu correndo a pé e os coxinhas apanharam muito (os homens). Um deles tinha um spray de pimenta que usava na cara das pessoas. Eles correram para trás dos seguranças da FIESP, que os protegeram com grades.

Um senhorzinho me viu escrevendo no caderninho e veio falar que tinha sido agredido e que tinha sangue escorrendo do rosto. Olhei e não vi sangue nenhum. Mas ele insistiu muito que tinha, e fiquei desconcertado com a evidente mentira dele.

A coisa acalmou e a polícia chegou logo depois, uns 15 soldados e umas 7 motocicletas. Foram falar com os coxinhas e já chegaram trocando tapinhas nas costas com eles. Acho que eles se conhecem todos do acampamento que ficou naquela calçada uns 3 meses em 2016. Lembro que um moço de verdeamarelo, em outra manifestação ali mesmo mas um ou dois anos atrás, quando teve confronto também, apontava para o policial pessoas em quem o PM ia bater: “aquele ali, ó”.

A polícia deteve um moço. Vi uma moça coxinhas muito alterada que era levada pela PM para a viatura. Achei incrível que ela estivesse sendo detida, mas me falaram que ela ia como a única testemunha do ocorrido!

Na hora, fiquei muito impressionado como os coxinhas não são de nada. Eles correram e apanharam, gritam muito mas são covardes. Deu um enorme alívio ver que podem ser confrontados.

Mas fiquei perturbado com a mentira da cadeira de rodas, com o sangue inexistente do velhinho. Saí de lá convencido de que a violência vai transbordar.

Bolsonaro está em Israel.

1 de abril

“Vídeo ótimo!!! Não dá pra negar a história registrada nos jornais da época!!!”

“Excelente vídeo. Recomendo o lançamento do filme 1964 do Brasil Paralelo.”

Estes foram comentários acerca do vídeo da presidência (em sites de direita). De fato, o ator (sabemos hoje quem é) convida o espectador a “pesquisar na mídia da época” o porquê da intervenção armada de 64: a ameaça comunista. O mecanismo todo das fake news é muito perverso. “Pesquisar” na internet quer dizer clicar em vídeos no youtube, e certamente uma onda de conteúdo pró-golpe foi veiculada de modo a ser detectada por algoritmos automáticos e revelar apenas elogios ao golpe.

Li que projeto anti-drogas de Moro endurece penas para traficantes, mas não define o que seria a quantidade de drogas que separa o traficante do usuário! Assim, quem decide é o PM, na hora. O policial pode decidir quem vai matar com impunidade (“forte emoção”) e quem vai para a prisão pelo crime hediondo de tráfico.

Segue a viagem de Bolsonaro e seu anúncio da abertura de um escritório “de negócios” em Jerusalém, que trouxe imediata retaliação dos países árabes e da Autoridade Palestina. O agronegócio brasileiro protestou.

O general Mourão disse que a decisão de postar o vídeo foi do presidente.

Saiu a expectativa de crescimento econômico e está abaixo de 2%. Os tais “sinais da recuperação” que a Globo e o PIG tanto alardearam nos anos Temer resultaram num peido. A reforma trabalhista não gerou empregos (subiu o desemprego e Bolsonaro disse que o IBGE calcula errado). Quem está mentindo e dizendo que a reforma da Previdência vai bombar a economia depois não vai assumir: vai sumir.

A previsão é que o comércio mundial decresça este ano.

Parece que as indústrias criativas já se adaptaram aos novos tempos onde imperamo terraplanismo e revisionismo histórico: uma unidade do SESC em São Paulo vai realizar uma grande exposição sobre… ufologia!

2 de abril

Li hoje que a proposta de reforma da Previdência do governo Bolsonaro devolve um privilégio para parte importante da sua base eleitoral: policiais federais, policiais civis, agentes penitenciários e agentes socioeducativos.

O empresário Osmar Stabile diz que foi ele quem comissionou o vídeo. Mourão volta a atrás e diz que não sabe quem postou o vídeo.

Gilmar Mendes dá bronca em Bretas e Lava Jato por prender Fichter baseado apenas em delação. Quando foi o Lula…

O STF colhe agora os frutos semeados por quem se furtou de parar a Lava Jato quando era tempo.

O ministro Marco Aurélio reconfirma posição contra prisão em segunda instância, o que beneficiaria Lula e outros. Há certa agitação na direita a respeito disso, prometem grandes mobilizações se ele for solto, mas duvido. Sua última mobilização foi um fracasso, e a próxima, marcada para 7 de abril, ainda não apareceu no meu radar.

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro abriu hoje um processo de impeachment contra o prefeito Marcelo Crivella.

Flávio Bolsonaro postou foto onde diz ao Hamas “Que se explodam”.

Foto de Juca MArtins

Teve leilão das fotos do Lula: foram 50 fotografias doadas por 43 fotógrafos, assinadas pelo ex-presidente na prisão. O total arrecadado foi mais de R$600mil. M foi e me contou que foi legal.

A barragem informacional que tudo embaralha continuou na forma da polêmica iniciada pelo presidente em Israel: o nazismo agora é de esquerda.

3 de abril

Um raio de luz cortou a escuridão.

Acompanho com interesse os caminhos do Brexit na Grã-Bretanha. Está tudo muito confuso, mas hoje fiquei radiante com um lance que achei firmemente colocava o partido Trabalhista na posição excelente: ganhar uma eleição geral, com maioria no parlamento e DESTROÇAR o partido conservador, que tem dentro de si uma extrema-direita radical.

Depois vi que não é tão simples, mas fica dado que se pode barrar a extrema-direita impulsionada digitalmente, que é possível hackear de fora um partido engessado e centrista, forçando-o à esquerda, que a aliança trabalhadores/juventude conectada e cosmopolita derrota o fascismo, que uma plataforma transformista e de esquerda é viável em países hegemônicos… Fiquem de olho!

4 de abril

Guedes foi ao Congresso defender a reforma e teve bate boca com os deputados da oposição. Foi conturbado e a falta de quem o defendesse foi muito comentada como evidência do caos e da fragilidade do relacionamento do Planalto com o Congresso. Mas é difícil saber o que restará amanhã de todo esse som e fúria. As seis horas de reunião ficaram, no noticiário, resumidas pelo Tigrão e a Tchutchuca da intervenção de Zeca Dirceu: a Bolsa caiu, o dólar subiu e os memes explodiram. Também as buscas no youtube pelo hit de 1999 “Tchutchuca Vem pro Seu Tigrão” bombaram.

Revisionismo: Vélez quer mudar livros didáticos para exaltar o golpe de 1964.

Mais de mil médicos brasileiros já desistiram do programa Mais Médicos.

A PF achou corrupção na delegacia que cuida do caso Marielle, com mesada para sabotar investigações. Tem um boato insistente rondando a imprensa que Moro tem um dossiê completo sobre o caso Marielle em sua mesa.

Moro abriu conta no twitter. Bolsonaro conversa com líderes de partidos para dar a impressão de articulação.

Toffoli adiou julgamento da segunda instância. O atraso está sendo lido como político, já que já vem sendo adiado conforme o cenário noticioso. O Noblat afirma que o adiamento foi por ordem dos militares.

A Folha deu que os militares não gostaram da defesa do golpe estapafúrdia de Vélez, e estariam pedindo sua remoção.

O MEC sem controle: olavistas parece que não têm quadros nem competência para administrar a máquina e implementar suas políticas ideológicas. O ENEM pode sair fora de controle e criar uma enorme crise.

O governo de Jair Bolsonaro enviou um telegrama à Organização das Nações Unidas (ONU) onde afirma que “não houve golpe de Estado” em 31 de março de 1964 e que os 21 anos de ditadura militar visavam “afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria”.

O telegrama foi uma resposta do governo brasileiro às críticas do relator especial da ONU sobre Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Fabian Salvioli, que na semana passada qualificou a decisão de Bolsonaro determinando que a data fosse comemorada como “imoral e inadmissível”.

5 de abril

Moro estreou no twitter e fez live com Bolsonaro. Não tive estômago de assistir.

Como ler o presente caos? É o método, como coloca Marcos Nobre? É incompetência do governo? É sintoma de transição para o fechamento?

Parte da esquerda está muito assustada e afirma que o autoritarismo está testando os limites de tolerância da sociedade ao mesmo tempo que mapeia toda a resistência, que tira da toca com episódios escabrosos, para no passo seguinte, no futuro próximo, prender e cortar as cabeças mapeadas. Um documento de 1964 da embaixada italiana fala em 20 mil prisões realizadas nas primeiras semanas do golpe.

Existe de fato uma ala “anti-establishment” no governo, e eles se acreditam em processo revolucionário nacional-popular. O jovem Filipe MArtins é um dos líderes desta ala.

Outros esquerdistas menos catastrofistas afirmam que o golpe já aconteceu e que a permanente distração da oposição com factóides se dá enquanto se opera a verdadeira consolidação do poder. O partido analítico da Guerra Híbrida é interessante e meio nessa linha.

A oposição parlamentar parece estar contente em aguardar o calendário eleitoral e ir deixando que Bolsonaro cave sua própria cova. Eles e muitos outros sentem que a posição do governo é insustentável no médio prazo e as dúvidas quanto à aprovação da Previdência seriam suficientes para que os mercados derrubem Bolsonaro com um impeachment. Mas o que resultaria da queda do capitão não é sabido. Muitos ainda se fiam na figura “equilibrada” de Mourão como contraponto e solução a Bolsonaro.

André Singer escreveu que o parlamentarismo está sendo ventilado como solução às crises sucessivas do governo.

Os movimentos sociais não têm essa paciência toda e tentam catar os cacos da derrota, reconstruir as discussões e reimaginar o futuro. A violência contra o “comunista” fica pipocando por todo o país: as polícias invadem escolas e universidades, ativistas são agredidos ou assassinados.

Nobre resume que à oposição então resta o ingrato papel de defender instituições indefensáveis e ao mesmo tempo desenhar suas reformas, de modo a reunir a disposição de resistência dispersa que existe fora das instituições e partidos.

De toda forma, parece que o governo se dá no intervalo entre as redes e o exército. As redes funcionariam como o fórum político mais democrático que a maioria das pessoas já experimentou, pois aquelas as aproximam de do poder de alguma forma, ainda que tênue (e ilusória). As redes mobilizam corpos na rua quando é necessário. Já o exército apareceria como polo organizador mínimo do estado, mas não é partido político e não trabalha eleitoralmente, portanto não é o que traria governabilidade a Bolsonaro,

O presidente diz que vai demitir Vélez do Ministério da Educação na segunda. Olavo de Carvalho sinalizou que autorizou.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *