Uma resposta popular à gentrificação

Nos EUA, uma cooperativa de trabalhadores, ameaçada por altos alugueis, enfrenta a especulação de forma instigante. Em rede, e por meio de fundo solidário, compram um prédio e o transforma em moradias e comércios populares

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Por Oscar Perry Abello | Tradução: Marianna Braghini

Matt Geraghty ouviu diversas vezes corretores tentando convencê-lo acerca da gentrificação de Fruitvale, um bairro marcadamente latino em Oakland, EUA, onde vive. Ele buscava um local para abrir uma cafeteria cooperativa de propriedade de trabalhadores, juntamente com alguns outros organizadores comunitários da Baía de São Francisco.

“O corretor que nos mostrava o espaço falava sem parar sobre como aquele bairro era emergente”, diz Geraghty, que se identifica como latino e indígena. “Não me perguntaram se eu morava aqui, só diziam: ‘se você quer abrir um restaurante, essa é uma zona em ascensão, sucesso garantido. Muitos jovens profissionais estão se mudando para cá, será o novo Mission District’” — se referindo ao bairro de São Francisco conhecido como o marco zero da gentrificação da Baía.

Ele ficou sabendo pela internet que o prédio que alugava havia sido posto à venda. Após passar um ano pagando o aluguel e renovando o espaço com dinheiro do próprio bolso, seu destino estava, novamente, incerto. Mas, apenas alguns meses depois, o Café Hasta Muerte reabriria as portas, em Fruitvale.

“Naquele momento, chorei muito”, disse Geraghty. “Eu não parava de pensar: ‘nós deveríamos desistir de uma vez, não vale a pena, obviamente não vamos conseguir levar adiante, não temos o dinheiro. Por que tentar?’ Era o duro fim dessa história. O bacana foi que… nossa comunidade atendeu ao chamado”.

Através de uma série de táticas inteligentes, os trabalhadores proprietários do Hasta Muerte conseguiram adquirir um novo espaço, em parceira com a Oakland Community Land Trust, uma das duzentas de entidades sem fins lucrativos criadas nos EUA para proteger o controle comunitário sobre propriedades. Embora o conceito de fundo fiduciário* comunitário tenha suas raízes em terras agrícolas, a maioria atualmente é focada em propriedades residenciais. Com o Hasta Muerte, a Oakland Community Land Trust se deparou com um modelo de financiamento comunitário que, agora, planeja usar para adquirir outros espaços comerciais e também culturais, em nome de grupos e cooperativas comunitárias em Oakland.

“Está mudando a narrativa sobre o que significa preservar comunidades e manter espaços, se valendo das próprias comunidades”, diz Steve King, diretor executivo da Oakland Community Land Trust.

Como a maioria dos fundos fiduciários comunitários criados nas últimas décadas nos EUA, o Oakland Community Land Trust se estabeleceu em 2010, com foco em propriedades residenciais. Em Oakland, a ideia era que o fundo fiduciário tomasse posse de casas hipotecadas e as vendesse como moradias acessíveis para famílias de média e baixa renda. Havia tantas propriedades afetadas ou hipotecadas ao fim da crise financeira de 2008 que os fundadores dos fundos de propriedades pensaram que os bancos atropelariam uns aos outros para doar propriedades e tirá-las de suas receitas.

“Acabou não sendo o caso”, disse King. “Mas, no momento, todos achavam que era o que iria acontecer”. Em vez disso, fundos acionários privados administrando trilhões de dólares em nome de fundos de pensão, fundações, dotações à universidades e ultrarricos acabaram comprando a maior parte das propriedades atingidas e as colocando para alugar, visando o lucro.

Nos primeiros cinco anos ou mais, o fundo de propriedades se virou bem, com a ajuda de dólares federais por meio do Neighborhood Stabilization Program [Programa de Estabilização de Bairros, em tradução livre], que fornecia financiamento para entidades sem fins lucrativos localizadas nas comunidades para adquirir propriedades hipotecadas, reabilitá-las e colocá-las de volta para funcionar. O fundo de terras foi capaz de reabilitar residências unifamiliares e algumas outras propriedades multifamiliares, um pequeno bastião contra a remoção de famílias.

Mais ou menos em 2015, as remoções começaram a se tornar um problema também para os negócios. Empresas de tecnologia, lideradas pela Pandora, localizada em Oakland, começaram a crescer ou migrar para a região de East Bay em busca de aluguéis mais baratos. Mas, as empresas de tecnologia financiadas por capital de risco, juntamente com as empresas que seus funcionários preferiam apadrinhar, estavam dispostas a pagar mais caro em aluguéis do que as empresas já estabelecidas em Oakland.

“Cerca de três anos atrás, de repente, havia essa iminente onda de entidades sem fins lucrativos sendo removidas de Downtown Oakland”, diz King.

Pela perspectiva comercial do mercado imobiliário, não poderia haver um Programa de Estabilização de Bairros oferecendo subsídios similares para salvar ou preservar propriedades comerciais.

A Oakland Community Land Trust finalmente se lançou para o lado comercial no ano passado, com a aquisição de um prédio de uso misto na 23ª Avenida, em parceria com seus inquilinos, o que incluiu locatários comerciais, bem como residenciais nos andares superiores (leia a cobertura prévia do acordo na Next City).

[…]

Apesar de existirem duas unidades residenciais no segundo piso do prédio centenário do Hasta Muerte, não havia tempo para incluir os locatários no acordo. Nem havia tempo para trabalhar por meio da burocracia da prefeitura para ter acesso a subsídios de preservação para oferecer preços acessíveis de moradia. O prédio já estava à venda e o locatário (um proprietário estrangeiro, segundo King) havia recebido uma oferta de cerca de um milhão de dólares.

O único motivo pelo qual o Hasta Muerte e o fundo de terras tiveram chance de conseguir o imóvel foi porque os trabalhadores proprietários negociaram com o locatário uma cláusula de direito de primeira recusa. Geraghty tinha ouvido falar disso no mundo de habitação cooperativa.

“Eu sabia que iríamos colocar muito recurso no prédio e estávamos negociando um contrato de aluguel de dez anos. Nesse período, qualquer coisa pode acontecer e estas pessoas não pareciam querer gastar um centavo em coisas necessárias para o prédio”, disse Geraghty. “Eu estava surpreso com a rapidez com a qual o corretor do locatário fez a aprovação. Acho que foi porque pensou que não havia a menor chance de podermos cobrir as outra oferta feitas a eles”.

Assim que o locatário recebeu uma proposta, os trabalhadores proprietários da cafeteria tinham três dias para fazer um depósito não reembolsável de US$ 30 mil (R$ 115 mil) e, depois, apenas mais 45 dias para arranjar o resto do dinheiro para igualar a oferta.

Foi intenso, com reuniões semanais e o fundo fiduciário fazendo constantes atualizações das planilhas de viabilidade financeira. Conseguiram levantar US$ 50 mil (R$ 192 mil) em doações por meio de uma campanha de financiamento coletivo. O fundo de terras colocou cerca de US$ 250 mil (R$ 960 mil) em dinheiro – que vieram originalmente de um financiamento de US$ 2 milhões (R$ 7,7 milhões), feito por um doador anônimo através da Fundação São Francisco. Anteriormente, pensavam que um empréstimo bancário poderia cobrir parte do acordo, mas o processo de aprovação levaria muito tempo.

O restante, mais de US$ 600 mil (R$ 2,3 milhões), teriam que vir da última fonte que eles achavam possível antes que o prazo de 45 dias expirasse : uma oferta privada para acionistas da comunidade. Há plataformas online para ofertas públicas de investimento no mercado imobiliário, como a Fundrise ou a Small Change, que permitem que empreendedores levantem capital de investidores com certo nível de riqueza, um fator, às vezes, necessário para serem habilitados como investidores. Aqueles que pretendessem arrecadar fundos poderiam embarcar nessa sozinhos, como o recém-aberto Community Foods Market em West Oakland. Afinal, a oferta privada é a mais fácil e mais rápida, e requer menos documentação e comprovantes financeiros.

O Hasta Muerte assumiu a liderança na busca e conversa com investidores. “A estratégia, de início, era mais pessoal, buscando em redes pessoais de contatos por email e telefone”, afirmou Geraghty.

Os doadores à campanha de financiamento coletivo eram os primeiros contatos. Nem todo mundo tem dinheiro suficiente ou a disposição de arriscar em tal investimento, mas todo mundo conhece alguém, que conhece outro alguém e as notícias correm rápido. Uma pessoa em uma entidade sem fins lucrativos entrou em contato com um empreendedor, que contou a história a outros donos de negócios que conhecia, e logo Geraghty viu-se sentado em uma mesa do Hasta Muerte com um casal que nunca tinha visto antes.

“Conversei com eles por vinte minutos, eles tinham algumas questões específicas sobre finanças e outros assuntos, que esclareci”, conta. “No dia seguinte, já se comprometeram com um investimento de 200 mil dólares.”

Notoriedade – ou solidariedade, depende do ponto de vista – também ajuda. Alguns meses antes, uma notícia se espalhou na imprensa internacional de que o Hasta Muerte tinha a política de se recusar a servir policiais fardados, pois a presença de um deles poderia comprometer física ou emocionalmente seus clientes, muitos dos quais são negros.

“Definitivamente há um sentimento generalizado de apoio a projetos que mantém espaços de resistência em tempos de elitização das comunidades”, se alegra Geraghty.

No fim das contas, vinte e dois investidores aderiram. Tinham a opção de estabelecer sua própria taxa de juros, entre 0% e 4% ao ano, durante o período do acordo de cinco anos de seu investimento. A maioria dos investidores escolheu não cobrar juros, de acordo com King, e o restante optou por algo entre 2% e 4% — combinado com cerca de 1% de juros pagos pelo total de US$ 600 mil dólares. São termos muito mais favoráveis do que os alcançados em qualquer banco e, como a venda foi concluída no último verão, o Hasta Muerte está pagando menos em juros aos investidores do que pagava em aluguel.

Assim como na maioria de fundos fiduciários de propriedades, a Oakland Community Land Trust irá reter o título da propriedade, ao passo que proporciona à cafeteria um aluguel acessível, de longo prazo e com a possibilidade de os locatários virarem proprietários, como cooperativa. Por ora, o fundo fiduciário e a cafeteria são donos conjuntamente da propriedade, mas agora têm tempo para construir uma propriedade cooperativa com locatários, seja os comerciais ou os residenciais.

“Não subestimo a possibilidade de me associar com outro grupo com valores que coincidem conosco”, disse Geraghty, sobre trabalhar com o fundo fiduciário.

Enquanto isso, o Oakland Community Land Trust já negocia a aquisição de propriedades em parceria com cooperativas do setor de alimentação, uma organização de artes e um grupo de organizações negras em busca de co-aluguéis. King diz que eles esperam utilizar uma oferta privada ou talvez pública de agrupar capital comunitário em um fundo centralizado que pode funcionar em todos estes projetos de uma vez, em vez de levantar capital para cada projeto individualmente.

“Há muito trabalho a ser feito”, diz King. “A cada projeto, temos que reinventar a roda. Precisamos de um ecossistema sustentável, no qual possamos realizar este trabalho e ter alguma previsibilidade de financiamento”.

*Um fundo fiduciário é um tipo especial de entidade jurídica que detém propriedade em benefício de outra pessoa, grupo ou organização. Existem diferentes tipos de fundos fiduciários e distintas disposições que mudam a forma como funcionam. De um modo geral, todos os fundos fiduciários têm três partes importantes: o concedente (que doa os recursos e decide os termos em que deve ser gerenciado), o beneficiário (pessoa ou grupo para quem o fundo foi estabelecido) e o administrado (responsável para que o fundo mantenha suas funções conforme estabelecida nos documentos de confiança).

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