A saúde privada à beira da mercantilização total

Operadoras financeirizam-se montam redes próprias de hospitais, clínicas e laboratórios, fazem aquisições bilionárias. Leia também: como foi a audiência pública sobre maconha medicinal; o Rio tem seu próprio Osmar Terra

.

Por Maíra Mathias e Raquel Torres

MAIS:
Esta é a edição de 1º de agosto da nossa newsletter diária: um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia. Para recebê-la toda manhã em seu e-mail, é só clicar aqui.

TENDÊNCIAS E DISPUTAS

A verticalização do mercado de saúde no Brasil mostra, agora, sua cara. Reportagem no Valor aponta para a animação do mercado financeiro em investir nas operadoras que, além dos planos, administram uma rede própria de hospitais, clínicas e laboratórios. Hapvida e NotreDame Intermédica já levantaram R$16,2 bilhões desde a oferta inicial de ações feita por ambas as empresas em abril do ano passado. E, desde então, captaram ainda mais recursos, boa parte usada para comprar mais hospitais e outras empresas menores. 

Companhias que representam outras formas de fazer negócios na saúde estão de olho na movimentação e tentam se preparar para não serem engolidas. É o caso da Unimed, que reúne 344 cooperativas médicas no país. O presidente da empresa, Orestes Pullin, não descarta que onde a concorrência se acirrar, a Unimed construa hospitais. Isso porque a verticalização tem se mostrado uma forma eficiente de controlar toda a cadeia de custos: uma mesma empresa recebe as mensalidades dos clientes e é dona das clínicas e hospitais que eles usam. As seguradoras de saúde, como Bradesco e SulAmérica, são proibidas de ter rede própria. O jornal explica que, neste caso, o caminho tem sido criar modalidades de seguro com uma rede mais enxuta de prestadores de serviços, na tentativa de negociar melhores preços e ter mais controle. 

Mas a tendência da verticalização deve levar à outra, a da oligopolização do mercado. Segundo Fred Mendes, analista do Bradesco BBI ouvido pelo Valor, no Brasil há cerca de 700 operadoras, mas o cenário não deve ficar assim por muito tempo: “Há espaço para mais consolidação. A tendência é de que haja poucos grupos com um grande volume de usuários cada. Esse é um negócio de escala.” 

A reportagem lembra que, nessa briga, já há sinais bastante ruins para os consumidores, com a tentativa das empresas de virarem de cabeça para baixo as regras que regem a saúde suplementar no Brasil. Mais um motivo para ficar de olho no mercado e entender os efeitos das tendências em curso.

MACONHA MEDICINAL

O diretor-presidente da Anvisa, William Dib, disse ontem que a “sociedade deve decidir quem tem razão” em relação ao plantio da cannabis para fins medicinais. A fala de efeito, na audiência pública sobre isso realizada ontem, foi em referência ao ministro da Cidadania Osmar Terra, que na semana passada ameaçou fechar a agência por conta da intenção de regulamentar o cultivo. “Não vou polemizar com o ministro, porque eu insisto que a Anvisa quer debater medicamento à base de cannabis e ele insiste em discutir o efeito deletério de drogas”, afirmou Dib. De acordo com ele, a redação da proposta de regulamentação deve ser finalizada até outubro.

As duas propostas discutidas – uma sobre requisitos para o cultivo da planta por empresas, outra sobre os procedimentos para o registro e monitoramento de medicamentos – estão em consulta pública até o dia 19, mas Dib afirmou que a proposta da agência não deve sofrer grandes alterações. Mas não há nada de unânime nos textos. Várias críticas vão no sentido de que as restrições impostas pela Anvisa ao plantio – locais fechados, vedação por dupla porta, alarmes, acesso controlado por biometria – vão encarecer o processo e privilegiar grandes empresas. Por outro lado, a comercialização dos produtos deve ser autorizada com estudos menos robustos do que os cobrados pela Anvisa para outros medicamentos. 

Para saber: a matéria da Galileu conta quando, como e por que a maconha (medicinal e recreativa) começou a ser proibida ao redor do mundo.

TERRAPLANISMO FLUMINENSE

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), resolveu ser o Osmar Terra fluminense. Não surpreende, já que políticos conservadores sem grandes ideias na cabeça têm usado o tema das drogas para aparecer. Nos últimos dias, ele sancionou uma lei que obriga todas as escolas a adotarem um programa de “resistência às drogas e à violência” ministrado por policiais militares; disse que endureceria a fiscalização do uso de maconha nas praias, prendendo os usuários da droga; e conseguiu uma parceria com o bispo licenciado da Igreja Universal, o prefeito do Rio Marcelo Crivella, que ficou encantado com a proposta de internar à força moradores de rua que pareçam estar sob efeito de drogas. Crivella, que vem cortando o orçamento da saúde desde que assumiu a Prefeitura, demitindo trabalhadores e fechando serviços, resolveu direcionar recursos financeiros para a criação de centro de triagens para avaliações de médicos, assistentes sociais e psicológicos dos moradores de rua. “É muito importante a gente saber se eles (população de rua) se enquadram dentro da internação involuntária. Para isso, tem que ter um diagnóstico médico”, disse Crivella ontem. 

Em tempo: segundo advogados ouvidos pelo Estadão, a internação involuntária proposta por Witzel e apoiada por Crivella é “inconstitucional”, “preocupante”, viola os direitos humanos e garantias constitucionais.  

QUIMERAS

Na China, um pesquisador espanhol criou pela primeira vez um ser vivo híbrido, mistura de humano e macaco. Segundo uma colaboradora de Juan Carlos Izpisúa, o objetivo do experimento é transformar essas “quimeras” em fábricas de órgãos para transplantes. E ele não é o único nessa corrida. Na semana passada, Hiromitsu Nakauchi foi o primeiro cientista a receber autorização do governo japonês para criar embriões de animais com células humanas, também com a meta de desenvolver órgãos para transplantes.

A experiência feita pelo grupo de Izpisúa, que envolve pesquisadores do Instituto Salk dos EUA e da Universidade Católica de Murcia, modificou geneticamente os embriões de macaco para desativar genes que formam seus órgãos. Na sequências, células humanas capazes de gerar qualquer tipo de tecido foram injetadas. A quimera não chegou a nascer: os pesquisadores interromperam a gestação. A reportagem do El País explica que tudo isso foi feito na China já que por lá a legislação não é um problema. Também foi na China que os primeiros bebês editados geneticamente nasceram, no ano passado.

CORTINA DE FUMAÇA?

Falamos por aqui sobre a posição do procurador Rodolfo Lopes, que declarou em coletiva que não viu indícios da presença não indígena nas terras Waiãpi, nem evidências que comprovassem que a morte do cacique Emyra Waiãpi foi um homicídio. Pois os Waiãpi denunciam a atuação dos agentes federais no caso. Segundo os líderes da comunidade indígena, houve muito desinteresse das autoridades na visita à terra indígena.

“Nós estávamos lá e a polícia chegou. Então mostramos os sinais da invasão para eles: o chão onde eles deixaram marcas de sapato e o cerrado em que eles abriram caminhos para poder entrar e sair. Os invasores abriram três caminhos, e explicamos para a polícia para que eles servem. Os policiais não se interessaram muito em seguir a gente nesses caminhos. Explicamos tudo, mas eles não pareciam interessados em ajudar a gente. E isso nos preocupou muito, pois tínhamos achado que eles tinham vindo para ajudar a localizar [os invasores]. Mostramos essa preocupação para eles. Eles não deram importância”, disse Asurui Waiãpi, um dos integrantes da aldeia, em vídeo divulgado por Época

Em relação ao assassinato, o senador Randolfe Rodrigues (Rede) afirmou à revista que os indígenas concordam com a exumação do corpo do cacique, apesar de ser contra sua tradição, para que um exame possa provar o homicídio. “Mas até o momento ninguém se mobilizou para realizar este procedimento”, disse o político, para quem parece “haver uma pressão das autoridades no sentido de encerrar o quanto antes as investigações”. 

TRABALHO ESCRAVO

O chefe do Ministério Público do Trabalho, Ronaldo Fleury, respondeu na BBC às declarações de Bolsonaro sobre o trabalho escravo: “Não conheço nenhum bom empresário – que cuidasse do meio ambiente de trabalho, cuidasse para que seus trabalhadores não fossem submetidos a jornadas extenuantes, que não descontasse dos valores dos seus empregados até material de trabalho, como motosserra e enxada – que tenha sido condenado”. O presidente disse que empresários são punidos por critérios insuficientes, como colchão fino para os empregados. Mas não: “O que encontramos e que se caracteriza como trabalho análogo ao de escravo são trabalhadores tendo que dormir em curral, ou no chiqueiro. São trabalhadores sem acesso a água potável, que não têm local para fazer suas necessidades e têm que fazer na beira do rio, têm que tomar banho no rio, porque não têm sequer água para tomar banho”, diz Fleury. No ano passado, foram encontradas 1,7 mil pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão. As multas somaram R$ 3,4 milhões. 

EXCELENTE EM DESCUMPRIR

Em julho, o Ministério Público do Trabalho notificou diversos hospitais gaúchos sobre a necessidade de cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal, de maio deste ano, que modificou a reforma trabalhista, voltando a proibir que grávidas e lactantes trabalhem em locais insalubres. Embora 149 trabalhadoras tenham sido retiradas de suas atividades (o Grupo Hospitalar Conceição afastou 101 funcionárias e o Hospital Mãe de Deus, 48), muitos outros responderam às perguntas da reportagem da GaúchaZH com evasivas. Dentre eles, está o Hospital Moinhos de Vento, considerado “filantrópico de excelência” pelo Ministério da Saúde e, por isso, beneficiado com isenções fiscais. Segundo nota, o Moinhos de Vento estaria “avaliando as consequências da referida medida no corpo de colaboradores” através de “estudo mais aprofundado acerca dos impactos da decisão”. Estaria a decisão da mais alta Corte do país sendo desrespeitada? Fica a pergunta.

INCONSTITUCIONAL

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, protocolou ontem pedido para que o STF suspenda a eficácia do decreto 9.831, assinado por Bolsonaro, que destituiu 11 peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e mudou as regras, por exemplo, prevendo que o cargo não seja remunerado. A PGR quer que o Supremo declare a medida inconstitucional.

MAIOR RISCO

Agência Pública e a Repórter Brasil analisam as mudanças estabelecidas pela Anvisa para a classificação e rotulagem de agrotóxicos. Além dos elementos que já discutimos por aqui (na nova classificação, só entram como ‘extremamente tóxicos’ os produtos que podem matar), a matéria ressalta que pode haver maior risco para crianças e agricultores que não leem bem, já que o símbolo da caveira vai sair da embalagem de produtos que causam lesões severas na pele e nos olhos.

E falando no assunto, segundo a pesquisadora Larissa Bombardi, da USP, aproximadamente um terço dos 262 agrotóxicos aprovados no governo Bolsonaro contém alguma substância proibida na União Europeia. Os mais comuns por aqui, banidos por lá há mais de 15 anos, são o acefato e a atracina.

SAÚDE MOVIMENTA DEBATE

No segundo debate entre os principais 20 pré-candidatos democratas que disputam a indicação do partido para a corrida presidencial de 2020, o futuro do sistema de saúde no país voltou a traçar uma linha divisória. A principal voz dos reformistas mais tradicionais voltou a ser Joe Biden, que ocupou a vice-presidência no governo Obama. Ele defende o aprimoramento das políticas do ex-chefe, como o Obamacare. Entre quem tem propostas mais ambiciosas para a área, o destaque do debate foi para a senadora da Califórnia, Kamala Harris, que defende uma guinada na direção de um sistema universal de seguros de saúde, em que cada pessoa poderia escolher seu provedor e onde o Estado garantisse regulação, no sentido de obrigar as empresas a expandir serviços e diminuir custos. 

UM ANIVERSÁRIO RUIM

Hoje faz um ano desde que a República Democrática do Congo declarou surto de ebola na província de Kivu do Norte. Nada parece melhorar: o vírus se espalha e, há duas semanas, a OMS declarou emergência internacional de saúde pública. Até agora foram mais de 2,6 mil casos confirmados e mais de 1,8 mil mortes – cerca de 30% dos infectados são crianças. O segundo paciente registrado com a doença em Goma, uma das maiores cidades do país, morreu ontem. 

CONFERÊNCIA NACIONAL

A 16ª Conferência Nacional de Saúde começa no domingo. Falta de medicamentos, médicos e equipes nas unidades de saúde, hospitais atendendo com portas fechadas à livre demanda, novas ameaças de doenças antigas como sarampo, queda da cobertura vacinal e desfinanciamento do SUS são alguns dos temas de discussões. 

Amanhã, em Brasília, a Abrasco promove um debate sobre seu documento de contribuição às discussões da 16ª Conferência Nacional de Saúde. O texto foi lançado em junho e tem sido apresentado em conferências livres e em etapas estaduais. E o Cebes lançou, no site, suas pautas em defesa da democracia, da soberania, dos direitos sociais e da saúde.  

É HOJE

O Ministério da Saúde vai lançar o Médicos Pelo Brasil daqui a pouco, às 11h em Brasília.   O evento será transmitido, ao vivo, pelas redes sociais da Pasta e pelo seu portal e sua webrádio.

E ainda: a Pasta renovou a participação de profissionais brasileiros e estrangeiros do Mais Médicos aprovados em julho de 2016. O tempo de trabalho vai ser prolongado automaticamente por mais três anos, até 2022.

Leia Também: