Fragmentos de uma catástrofe dilatada

“Jamais terá cabimento o que uma mãe diz quando vê a cabeça do filho num saco plástico. Só a linguagem da loucura é capaz de sugerir algum marco, guardar traços do que já foi sentido, na dupla perspectiva do objeto e do sujeito”

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Por Priscila Figueiredo | Imagem: Candido Portinari, A ressurreição de Lázaro (1944)

I – Pergunte às vítimas o que acharam

A nossa época fez com que a hipérbole, como na Segunda Guerra Mundial e na era atômica, se tornasse de novo uma figura de retórica insuficiente para manifestar o exagero — e “a verdade é o exagero”. Além de ser impossível que este seja retórico hoje — retórica que no entanto sempre fora necessária para apreender fenômenos que de outro modo não poderiam ser apreendidos, especialmente pela sua banalização, mas não menor gravidade –, não sabemos que tropo usar em relação ao imensurável do que vivemos, ao quanto se é afetado pelos choques de acontecimentos cada vez mais variadamente estranhos e recorrentes, mas também pela linguagem do novo dia-a-dia, difundida e repetida pelas redes infinitas em que a tecnologia também nos replica. As palavras que acusam ou recusam aquilo em que vamos afundando mais e mais, se é que é válida essa metáfora, afundar, aparecem como destituídas de tônus, o que por outro lado exigiria uma nova responsabilidade no seu uso porque não podemos prescindir delas.

Jamais terá cabimento o que uma mãe diz quando vê a cabeça do filho num saco plástico. Só a linguagem da loucura é capaz de sugerir algum roteiro, guardar traços do que já foi sentido, na dupla perspectiva do objeto e do sujeito – o excesso do acontecimento, os órgãos humanos da sua percepção, pois poucas expressões parecerão à altura quando a razão explode pela luz intensa e ofuscante disso que não deixa de ser um espetáculo, tão perigoso de ver como era para os antigos gregos o rosto de Medusa, embora, de maneira inversa, petrificante enquanto ainda não fosse separado de seu corpo; mas é que Medusa não era humana, era deusa ou a própria morte. O que entrou pelos olhos no caso da mãe fora a dissolução súbita e conjunta de humanidade, a desantropomorfização, pois é uma cabeça separada de seu corpo, e, mais ainda, não reunida a ele para o ritual funerário, qualquer que fosse, colhida num saco transparente, de material sintético e vulgar, que estará junto a dezenas de outros sacos e da mais terna intimidade, pois era a cabeça do corpo de um filho. Difícil discernir o que seria mais inexprimível como vivência: o desaparecimento para sempre desse corpo ou o aparecimento excessivo de uma parte que não dá acesso à humanidade daquele ao qual pertencia. Por sua vez, a frase, também recente, que o atual chefe de Estado dirigiu ao presidente da OAB, eu sei o que aconteceu ao seu pai, levantou lebres e cadáveres, aos quais continuou a não dar sepultura.

Quanto ao membro separado na decapitação, trata-se de um antiquíssimo troféu de combatentes de guerra:

“Arranca a cabeça e deixa pendurada
É a Rotam patrulhando a noite inteira
Pena de morte à moda brasileira”

O que pareceu especialmente curioso é que, contrastado com o dos dois primeiros versos desse cântico, entoado diante de um impassível governador pela tropa de elite policial no Amazonas, o emissor da última linha poderia ser outro. O sujeito que descreve sucintamente seu método de trabalho no início poderia não ser o mesmo que por fim o conceitua, chamando-o de “pena de morte à brasileira”. Esta soa como um juízo sobre aqueles que a executam, juízo negativo ou ao menos irônico. Mas não é evidentemente o que ocorre, e não se trata de comentário crítico ao conteúdo do que foi expresso no início nem provavelmente constitua uma cisão do sujeito, que antes permanece o mesmo em todos os momentos. O mesmo e novo sujeito talvez, sem temor de nomear à luz do dia o que faz, muitas vezes também à luz do dia, e de nomear apropriando-se do que originalmente fora sentido como uma crítica, ou mesmo se antecipando a ela. Quanto a esse aspecto, talvez haja um recado dirigido àqueles que, ativistas ou teóricos, a formularam ou formulariam: “Vejam o que esses policiais já fazem por conta própria: pena de morte à brasileira”. Mas eis que agora os agentes de segurança assim o conceituam, com uma piscadela e um dar de ombros também. Seja como for, há algo novo aqui, ainda que pareça velho e conforme a nossa tradição de abusos do poder (já tinha sido de algum modo sintetizado por Ruy Barbosa em 1913: “Abolida a pena de morte [no Brasil], mata-se agora sem pena”i), renovada apenas pela apropriação daqueles contra quem ela se voltava. Sabemos, no entanto, que essa forma não constitui a única, e o sabemos muito antes de o governador Dória incentivar que criminosos fossem da rua direto para o cemitério, sem passar pelo purgatório infernal do presídio. Por que assim especificar?

A convivência num espaço de dias entre o acontecimento visual das cabeças degoladas (que, no caso da mãe que o testemunhou, naturalmente atinge outro grau de terror) e o acontecimento sonoro (pois também pelos ouvidos se experiencia o nefando, como sabia qualquer teórico da estética do sublime e do grotesco) que repõe pelas palavras de ordem cantadas a imagem da degola, nos leva a pensar que as cenas exibidas e filmadas, muitas vezes por eles mesmos –para aterrorizar o terror sob o qual vivem — e nos assombra desde pelo menos os motins no presídio de Pedrinhas (“a melhor coisa do Maranhão”, segundo Bolsonaro disse no mesmo ano de sua ocorrência, em 2017), foi assistido, admirado e assimilado pelas forças da ordem, ao menos enquanto tais. Elas agora o prometem como prática “identitária”. A pena de morte, parecem alardear, tão tradicionalmente sem caráter e ritual entre nós, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, agora terá algum método ou singularidade.

II – Os caras vão morrer igual barata, pô

O pô, uma redução ou apócope, dá nota especial e cafajeste ao veredicto, como tal carregado de valor performativo. A sentença do pai num conto de Kafka é na verdade profecia que realiza ou manda realizar, juízo definitivo e irresistível: Morrerás afogado!, o que o filho prontamente executa. Mas , como dizia, nos dá ambiência perfeitamente brasileira e talvez mais carioca (puô), talvez anos 70 e 80, lembrando algum personagem de Rubem Fonseca ou Nelson Rodrigues. A frase toda é, em suma, nazismo em língua brasileira, com a contribuição milionária que esta sempre teve a oferecer.

Apesar de usar o “igual” comparativo, Bolsonaro vaticinou uma metamorfose, como Hitler e asseclas o fizeram em relação aos judeus, que passaram a tratar como piolhos sem que no entanto expressassem publicamente “Os judeus morrerão como piolhos”, mas antes o sugerissem pelo uso da montagem paralela de judeus e piolhos em documentários encomendados: “O que fazer quando tais insetos se multiplicam infernalmente?”

Como as baratas morrem? Elas morrem de um modo tal porque já são baratas – exterminadas sumariamente, com inseticidas ou uma pisada. Só é possível morrer “como” porque já foi decretado o que se é. O “como” ou o mais popular “igual [que]” adveio da conclusão sobre o que seria a essência dos assim discriminados: não é homem, então não morrerá igual homem.

Mas serão muitos, enxame ou legião. Que se apresente em massa o que deve ser exterminado já indicaria uma erosão do humano, considerado em termos de quantidade, e não de qualidade e potencialidades. Que o inimigo seja no entanto convertido em praga ou insetos que infestam indica outro nível de violência, estratégia ou técnica. Conforme a defesa que Bolsonaro, ainda candidato, fizera à exclusão de ilicitude: “Em local que você possa deixar livre da linha de tiro as pessoas de bem da comunidade, ir com tudo para cima deles e dar para o policial, e dar para os agentes da segurança pública o excludente de ilicitude. Ele entra, resolve o problema, se matar 10, 15 ou 20 com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado”. Matar 10 ou 20 ou mais, com 10 ou 30 tiros cada um – não deve importar a quantidade de cadáveres empilhados, e nos corpos não deve importar a quantidade de tiros. Não deve ser julgado, mas antes condecorado pela exorbitância o policial que o cometeu. Trata-se de outra forma de dizer que o trabalho de matar deverá ser incansável e, como tal, louvável e recompensado. Quer-se liberar de responsabilidade a gratuidade, e ainda o quantum, e além dele o como, a disposição subjetiva em quem atirou além do que precisava, se é que precisava.

III – Cabeça como troféu

A distância entre o poder e a massa tende a ser a de um gigante e uma multidão de homúnculos. O gigante, escreveu Elias Canetti num ensaio de 1962, “Poder e sobrevivência”, assim se constituiu em razão de um impulso de unicidadeii. O que é isso? O poder acumula sobrevivências – quanto mais mortos, maior o gozo de que você não seja um deles, mas um sobrevivente: Quem tomou gosto pela sobrevivência quer acumulá-la. Na Oceania, lembra, supunha-se que o mana, um poder sobrenatural e impessoal, transferia-se da vítima para o seu algoz. A coragem seria assim não a causa da sobrevivência, mas o seu resultado – quanto mais sobrevivo, mais me torno corajoso e disposto a sofrer riscos e, se sair ileso, mais aguço minha invulnerabilidade. Essa seria a genealogia do herói, que em algumas partes podia trazer como troféu de seu poder partes do corpo do inimigo, como uma mão ressecada, um crânio. Quanto mais coleciona sobrevivências, mais poderoso é um chefe, e, assim, nas Ilhas Figi, o grau de heroicidade é perfeitamente contável em cadáveres: no nível mais baixo, aquele que matou apenas um; no nível mais alto, o que matou 30 ou mais. A linguagem se vê em dificuldades para contabilizar esses mortos, contabilidade que é a própria classificação do herói: koli-visa-wangka identifica um combatente dos mais prestigiados e significa 10+20+30, isto é, os 60 homens que matou. O gigantismo de um poder cesarista acumula a sobrevivência não só dos inimigos, mas até dos seus conselheiros, até de amigos, até de familiares próximos. A situação clássica do tirano que teme ser morto pelos filhos é ilustrado da maneira mais eloquente pela história de Shaka, o fundador do Império zulu, que ameaçava com a morte caso alguma de suas 1200 mulheres ficasse grávida.

Na fantasia paranoica do ex-presidente do Senado de Dresden, Schreber, expressa nas memórias que tanto impressionaram a Freud – e este pouco lhes aproveitou, continua Canetti, porque além de tudo escrevera sobre ele em 1911, antes da Primeira Guerra Mundial, quando então se mostraria toda a potência daquele delírio –, toda a humanidade tinha se extinguido, talvez em razão de uma epidemia, e apenas ele restara vivo, o que lhe parecia enigmático. No entanto, Schreber era consciente, no asilo em que esteve por anos internado, da presença de médicos, enfermeiras, assim como de sua mulher que o visitava regularmente. Por que ainda assim se obstinava a achar-se único? Os outros, diz, eram visões fugazes, “não eram reais, eram homens de ‘feitura efêmera’, pelos quais não dava nada”, meras visões para confundi-lo. Mas ele não estava sozinho em seu delírio, pois de noite, atraídas por ele, desciam das estrelas as almas de todos os mortos, na verdade homúnculos de alguns centímetros, para viver uma vida fugaz em seu cérebro e de se dissolver em seu corpo. Ele bem que tentava alertá-las, quando se agregavam aos montes a sua volta, de que tinha grande violência de sucção, mas não adiantava – todas se volatilizavam dentro dele. Aqui, é como se o ensaísta revisse ou revivesse, sob a forma de homúnculos, a imagem de partes de cadáveres que chefes guerreiros usavam como emblemas de sua força. E é com o símile do gigante dotado de grande força de aspiração, comparado por ele a todo Führer, que ele termina seu texto, o qual começara com uma visão graficamente minimalista da situação humana: estar em pé, sentado, deitado. “Um homem em pé sugere autonomia e capacidade de tomar decisão; por sua vez, o homem que vai descansar, o homem deitado, encontra-se desarmado. É fácil apanhá-lo em seu sono, indefeso. Mal talvez o homem deitado tenha caído, ou talvez tenha sido ferido. Enquanto não se puder de novo sobre suas pernas, não será considerado um ser completo”. De alguém assim o inimigo se aproxima com cautela, temeroso de que ainda encontre sinais de vida, e o amigo com esperança. No fundo de ambos, porém, o sentimento, que em geral certos arranjos civilizacionais mandaram abafar, de satisfação por estar vivo e, em seguida, de superioridade em relação ao morto e, por fim, o sentimento de dominá-lo. Essa satisfação mal se inibe no guerreiro que traz como penduricalhos partes de seus antigos inimigos, e, se nem sempre “um indivíduo isolado pode matar tantos homens quanto desejaria sua paixão pela sobrevivência (…), pode induzir outros ou dirigi-los a isso”.

Uma forma de induzi-los é a rapinagem, de cujo produto ele lhes permite desfrutar e com isso “os ata a si”. Ele permite, pode-se acrescentar, que vivam em perpétua anarquia, brandindo cabeças como insígnias de sua sobrevivência e dominação. Creio que o autor concordaria que às vezes essa sobrevivência pode incluir ou se permutar pela sobrevivência econômica, e ele certamente mencionaria o exemplo, caso ainda estivesse vivo, dos soldados do Exército de Libertação Popular do Sudão do Sul, que desde 2014, e talvez ainda agora, recebem como soldo de um Estado falido a possibilidade de assassinar civis, fazer degolas e estuprar mulheres em massa. Talvez mal consigam se alimentar já que não recebem salário e mesmo ainda não devem comer concretamente a carne de suas vítimas, mas o governo percebeu que em alguma medida é possível fazer intercâmbios, conquanto não perfeitos, no plano da satisfação libidinal, substituindo pagamento em dinheiro ou gêneros por direito irrestrito de matar e violar. Ao menos isso os mantém de pé e fiéis a ele.

Para Canetti, Schreber nos permitiria compreender “por dentro” e com grande literalidade o mecanismo que viera analisando até então sob potências e metamorfoses variadas, na literatura épica de todos os povos. Como pano de fundo do travelling vertiginoso de seu ensaio, o sentimento íntimo de quem sabia o que era o fascismo e escrevia durante a era atômica. Assim é que em outro ensaio comentaria os diários de um médico japonês em Hiroshima, Dr. Hachya, escritos durante 56 dias desde a explosão da bomba, em 6 de agosto de 1945, “a catástrofe mais concentrada que já se abateu sobre os homens” e parecia sem termo de comparação ao probo médico. Só no sétimo dia do acontecimento ele saberia por uma visita de fora que o inaudito com o qual estava buscando lidar, em hospitais e nas ruas por que passava, era consequência de uma explosão atômica. O que o comentador mais parece admirar nesses escritos é o fato de esse médico jamais perder o respeito pelos mortos — mesmo na situação de morte em massa e mesmo profissionalmente propenso a isso — e, mais ainda, ficar horrorizado com o desaparecimento desse respeito nos outros. Jamais deixa de se curvar respeitosamente a um cadáver, tendo-o conhecido ou não. Um dia ouve e se revolta com a pergunta que um homem dirige a um colega, no local onde ocorriam as cremações em frente ao hospital, sobre o número de cremações que tinha efetuado naquele dia.

O mais inatingível nesse homem é, porém, o seu respeito pelos mortos. Já se falou aqui no quão difícil é suportar que as pessoas se acostumem à morte (…). Não se tem a sensação de que, para ele, os mortos se amalgamam numa massa, na qual o indivíduo não mais conta. Ele pensa nos mortos como pessoas. //O 44o Dia após a desgraça é dedicado à memória dos mortos. Com sua bicicleta, ele vai à cidade e visita cada lugar consagrado pelos mortos – pelos seus próprios, e também por aqueles de cuja morte soube. // Cerra os olhos para visualizar uma vizinha que morrera, e ela lhe aparece. Tão logo abre os olhos, a imagem se desvanece; fecha-os novamente, e ela torna a aparecer. Hachya procura seu caminho por entre os escombros da cidade, e não se pode dizer que vagueia perdido – sabe exatamente o que procura, e o acha: os lugares dos mortos. De nada se poupa: traz tudo de novo à mente (…)”.


iApud Luiz Francisco Carvalho Filho, “Licença para matar”, Folha de São Paulo, 19/05/2018.

iiA consciência das palavras – Ensaios (trad. Marcio Suzuki e Herbert Caro). São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

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