Ministra Cármen Lúcia em sessão no STF em novembro de 2021 Crédito: STF/Flickr

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Cármen aponta “caquistocracia” ambiental no Brasil

Em voto histórico, ministra diz que gestão do tema é feita “pelos piores” e determina que governo elabore, em 60 dias, um plano para retomar o efetivo combate ao desmatamento

06.04.2022 - Atualizado 11.03.2024 às 08:30 |

DO OC – Foi citando Caetano Veloso e determinando que o governo apresente em até 60 dias de um plano efetivo de prevenção ao desmatamento que a ministra do STF Cármen Lúcia concluiu, na tarde desta quarta-feira (06/04), o seu voto favorável às ações ADPF 760 e a ADO 54, que acusam o governo federal de omissão no combate ao desmatamento e cobram a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). As duas ações em julgamento fazem parte da “Pacote Verde” do STF, um conjunto de sete processos ajuizados por partidos políticos com apoio da sociedade civil que questionam o desmonte das políticas ambientais pelo governo de Jair Bolsonaro.

Carmen iniciou seu voto na última quinta-feira (31/03), segundo dia do julgamento do Pacote Verde, defendendo que o Estado não pode retroceder na proteção ambiental e que é obrigação do poder público garantir a preservação do meio ambiente. Ao retomar sua manifestação na sessão desta quarta-feira, a ministra, que é relatora de seis das ações, apresentou um vídeo sobre ameaças à Amazônia e distribuiu aos demais dez ministros o resumo do sumário-executivo do último relatório do IPCC, compilado pelo Observatório do Clima no início desta semana.

Na sessão anterior, a magistrada iniciou sua sustentação com uma fala recente do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o Brasil é um “pequeno transgressor” ambiental e que “de vez em quando tem uma floresta que queima aqui e ali”. “A meu ver, a transgressão está confessada”, disse. Nesta última, ela declarou, contrariando o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que entende existir um “estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental no Brasil” por diversos motivos, entre eles pelo processo de redução da fiscalização, a ausência de um plano de combate ao desmatamento e a ausência de cumprimento dos recursos orçamentário. Antes de iniciar a votação, Augusto Aras, Procurador-Geral da República (PGR), havia se manifestado de forma contrária aos sete processos (um deles inclusive impetrado pela própria PGR), afirmando que que a atuação do governo Bolsonaro em relação o desmatamento na Amazônia não teria violado a Constituição. Ao que a ministra argumentou:

“Aqui estamos falando de um estado de coisas inconstitucional porque propicia a mudança do modus operandi [modo de ação] dos desmatadores. A ecocriminalidade deve ser restringida e punida no devido processo legal”, disse a ministra.

Cármen deu um voto acachapante, no qual descreveu a gestão praticada pelo atual governo como uma “caquistocracia”, expressão da ciência política que descreve os regimes nos quais os piores cidadãos lideram a sociedade. No melhor estilo “não alimente os trolls”, fez diversas referências a atos do “então ministro do Meio Ambiente”, mas não citou o nome de Ricardo Salles uma única vez.

Ela mostrou, com dados de autuações, embargos, desmatamento e outros indicadores – de resto, amplamente coligidos por atores que vão da sociedade civil à Controladoria-Geral da União – que as políticas de combate ao desmatamento que o governo diz adotar são uma casca vazia, ou um “teatro”, como afirmou na semana passada. Sob uma pátina de normalidade esconde-se uma estrutura disfuncional – ou, como diss, “um engodo administrativo”.

“As operações foram mantidas, o que se comprova nos autos com números, mas sem eficiência sem estratégia, sem cumprimento do regulamento do Ibama. Portanto, sem resultado de eficiência na fiscalização para evitar a permanência de estado de omissão fiscalizatória e afrouxamento administrativo que estimula e reforça a prática de ilegalidade e crimes”, disse. Como embasamento, a ministra citou, entre outros dados, uma nota técnica de autoria de Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, que mostra os problemas do atual governo na execução orçamentária. Há alguns meses, relatório divulgado pelo OC demonstrou que, em 2021, só foram liquidados 41% dos recursos autorizados na ação orçamentária referente à fiscalização do Ibama.

Para a ministra, “a inércia, a atuação insuficiente, ou contrária aos deveres, macula de inconstitucionalidade a atuação do Estado, impondo-se a intervenção judicial para restabelecer a eficácia dos direitos à dignidade ambiental, aos direitos fundamentais dos indivíduos da presente e das futuras gerações”.

Não é frequente o STF reconhecer o estado de coisas inconstitucional. Caracterizado por três pressupostos, entre eles um quadro de “violação massiva e generalizada e sistemática de direitos fundamentais que afeta um número amplo de pessoas”, ele foi reconhecido, por exemplo, quando a Corte analisou uma ação sobre o sistema penitenciário brasileiro, em 2015.

Cármen Lúcia fez, durante toda sua manifestação, duras críticas à condução da política ambiental pelo governo Bolsonaro, afirmando que o país tem sofrido um quadro de “cupinização institucional”, uma espécie de processo de corrosão interna dos órgãos ambientais. “O que são esses cupins? O cupim do autoritarismo, o cupim do populismo, o cupim de interesses pessoais, o cupim da ineficiência administrativa. Tudo isso ajuda a construir um quadro que faz com que não se tenha cumprimento objetivo garantido, de conteúdo, da matéria constitucional devidamente assegurada”, afirmou, na semana passada, ao introduzir a matéria.

Na retomada do voto, nesta quarta-feira, Cármen Lúcia seguiu destacando as omissões e retrocessos na implementação da política de combate ao desmatamento e na política ambiental de forma mais ampla pelo governo Bolsonaro, desmontando, com argumentos contundentes e dados científicos, as alegações da AGU. Ao explicitar a diminuição de autuações verificadas em 2019 e 2020 na Amazônia, com queda de 29% em 2019 e 46% em 2020, comentar sobre a drástica redução de termos de embargo das sanções mais aplicadas em caso de desmatamento ilegal e expor situações de assédio moral, aparelhamento político e falta de funcionários, a ministra argumenta que está comprovada a omissão do Governo Federal na execução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), após demonstrada a ineficiência e inércia do plano substituto.

“As falhas apontadas reforçam a tese apresentada pelos autores de deficiência estrutural” no combate ao desmatamento”, disse.

Citando trecho da canção Terra, de Caetano Veloso, que diz “De onde nem tempo, nem espaço, Que a força mande coragem, Pra gente te dar carinho, Durante toda a viagem”, a ministra complementou: “Acho que exatamente isso que a terra pede. (…) Por isso e por tudo que se demonstrou aqui, pela capacidade que o direito constitucional tem para dar um estancamento definitivo e uma mudança de rumo possível nos termos jurídicos, mas com adoção das políticas publicas nos termos da jurisprudência deste supremo eu voto no sentido de conhecer e julgar procedentes a ADPF 760 e ADO 54”.

Como previsto, o longo voto foi seguido por um pedido de vistas do ministro “terrivelmente evangélico” André Mendonça, indicado de Jair Bolsonaro para o STF. Em sua intervenção, Mendonça fez uma espécie de bingo ambiental do bolsonarismo, repetindo argumentos falsos de que seria preciso comprar um novo sistema de satélites porque os dados do Inpe são insuficientes, de que não é possível responsabilizar desmatadores sem mudar a legislação de “regularização fundiária” (eufemismo para grilagem) e de que os países que compram madeira ilegal do Brasil têm culpa pela devastação.

Foi contraditado por Alexandre de Moraes, que disse que quem compra madeira ilegal não são países, e sim particulares criminosos, que “existem em todo lugar”. E lembrou ao ex-ministro da Justiça que o contrabando de madeira foi facilitado por atos do presidente do Ibama e do então ministro do Meio Ambiente, ambos alvos de um inquérito aberto pelo próprio Moraes no Supremo. Quem avisou o Brasil sobre o esquema, acrescentou Moraes, foi o governo dos EUA.

Nenhum ministro adiantou voto na ADPF 760 e na ADO 54. O julgamento continua nesta quinta-feira (8).

Para Suely Araújo, o voto de Cármen Lúcia representa um passo extremamente importante para o futuro do país: “Foi um voto robusto, fundamentado em cada afirmação e de enorme alcance como precedente. O governo não tem a opção de não concretizar as políticas públicas inerentes aos direitos sociais assegurados pela Constituição. Esse voto é histórico não somente para a política ambiental, mas também para definir o posicionamento do Supremo com relação a omissões e retrocessos nas políticas públicas. Esse voto constituirá um precedente histórico também para os desmontes que estão ocorrendo no atual governo em relação a política educacional, de ciência e tecnologia e outras áreas”, concluiu. (JAQUELINE SORDI)

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