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    Ilustração: Carvall

questões ambientais

Foram longe demais

O projeto da mineração em terra indígena é tão agressivo que espantou até os indígenas que faturavam com a mineração

Roberto Kaz | 05 abr 2022_10h15
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O primeiro sinal da mudança ocorreu no dia 16 de março, quando Kokomati Kayapó, liderança da aldeia Gorotire, postou um vídeo no grupo de WhatsApp da Concentração do Povo Kayapó. No vídeo, Kokomati aparecia junto a uma dezena de homens de sua aldeia – todos guerreiros, de cocar – para dizer, em sua língua, que o grupo era contrário ao projeto de lei 191 de 2020. Ele se referia ao projeto que autoriza o garimpo em terras indígenas, cuja urgência havia sido aprovada na Câmara dos Deputados sete dias antes. “Deixo aqui o recado que vamos todos a Brasília”, anunciava, com raiva.

À primeira vista, o vídeo poderia soar como mais uma manifestação do óbvio: garimpos destroem florestas, e indígenas são os povos que mais protegem as florestas. Mas, para um conhecedor do tema, o movimento da aldeia Gorotire – um dos sete grupos que formam o povo Kayapó – era surpreendente, tão surpreendente quanto assistir ao presidente Jair Bolsonaro, de súbito, criticando o trabalho da Polícia Militar (ou da milícia, para ficar num modelo econômico mais próximo ao do garimpo). Durante as últimas décadas, uma parte considerável dos Gorotire esteve associada ao garimpo ilegal. Em outras palavras, apoiava o garimpo ilegal e faturava (pouco) com ele.

Cortada pelo Rio Xingu, a Terra Indígena Kayapó – onde vivem os Gorotire – fica na parte Sul do Pará, próxima de Novo Progresso, Altamira e São Félix do Xingu, as três cidades que entraram no imaginário nacional em 2019, quando fazendeiros “instituíram” o Dia do Fogo – uma ação orquestrada que fez a região responder por 39% dos focos de incêndio de todo o Brasil ao longo de um fim de semana. Embora não haja uma estimativa precisa da população, sabe-se que os Kayapó vivem em ao menos dezenove aldeias, numa área equivalente à do estado de Alagoas. Uma dessas aldeias é a dos Gorotire.

A presença de garimpeiros em terras indígenas não chega a ser rara. Alguns entram à força, outros fazem acordos com caciques ou lideranças locais, que levam parte dos lucros em troca da conivência com a exploração. O valor, ínfimo em relação ao ouro extraído, costuma beneficiar algumas poucas famílias, e não a comunidade. “Mas é dinheiro vivo, na mão, todo dia; acaba seduzindo”, explica Doto Takak-Ire, responsável pelas relações públicas do Instituto Kabu, uma associação formada por doze aldeias Kayapó. “Com a exploração de madeira é a mesma coisa. Vira um vício.”

O que é raro mesmo é ver algo como naquele vídeo de WhatsApp: uma aldeia ligada ao garimpo mudando de lado. É ainda mais raro num momento como o atual, em que o presidente da República e o presidente da Câmara dos Deputados, unidos, fazem uma força-tarefa para liberar o garimpo a torto e a direito em território nacional. “Até eu me pergunto por que os Gorotire fizeram isso”, continuou Doto Takak-Ire. “Por muito tempo tentamos fazer eles lutarem do nosso lado. Mas as lideranças Gorotire nunca entendiam o problema.” 

Agora, com o projeto de lei 191 de 2020, o problema agravou-se como nunca.

Apelidado de x-tudo, o PL 191 é o pior projeto de lei antiambiental de todos os tempos da última semana – e a competição é forte, dada a recente aprovação na Câmara dos projetos 3729/04 (que liquida com o licenciamento ambiental), do 2633/20 (que legaliza a grilagem) e do 6922/02 (que facilita a liberação de novos agrotóxicos, inclusive cancerígenos).

A antropóloga Luísa Molina, que pesquisa os Munduruku, uma das etnias mais afetadas pelo garimpo, conta que o PL 191 foi elaborado entre setembro e novembro de 2019, em duas reuniões no Palácio do Planalto. Estavam presentes os ministros Onyx Lorenzoni (então na Casa Civil), Ricardo Salles (o ex-ministro do Meio Ambiente que deu carona a garimpeiros em um avião da FAB) e o general da reserva Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional de um governo não muito afeito à segurança das instituições). 

As reuniões também contaram com as presenças do senador Zequinha Marinho (PL-PA) – atual pré-candidato ao governo do Pará – e de garimpeiros do Tapajós, o rio paraense cuja água, em tom verde-esmeralda, foi tingida de marrom no começo deste ano, em função do mercúrio. O texto ainda passaria pelas mãos de Bento Albuquerque, ministro das Minas e Energias, e Sergio Moro, então no comando da Justiça, que se encarregaram de dar o toque final e encaminhá-lo à Câmara, em fevereiro de 2020, na condição de autores. Como no caso da grilagem, o PL 191 legaliza um crime: o garimpo em terras indígenas, uma atividade até agora ilegal que cresceu 495% entre 2010 e 2020, segundo o MapBiomas. E a Amazônia – único patrimônio do Brasil capaz de dar ao país um lugar de destaque na discussão mundial (caso continue de pé) – concentra 93,7% desse garimpo. 

Por inconsistente que é, o PL passou dois anos praticamente parado, até ganhar vida, subitamente, pelas mãos do presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira. Ele atropelou os trâmites e pautou a urgência do projeto de um dia para o outro, sem avisar as bancadas. Argumentou, com a bênção de Jair Bolsonaro, que a guerra na Ucrânia tornava urgente a garimpagem em terra indígena, sob a justificativa de que o Brasil correria risco de ficar sem potássio (o mineral, muito usado em agrotóxicos, costuma ser importado da Rússia). Só não explicou que na Amazônia não há uma única mina de potássio em terras indígenas homologadas. O requerimento de urgência foi apresentado a Lira pelo líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), na manhã do dia 9 de março, e votado no fim daquela noite, sendo aprovado por 279 votos a 190. (A votação ocorreu no mesmo dia em que a produtora Paula Lavigne levou artistas como Caetano Veloso, Emicida e Christiane Torloni ao Senado para pressionar o presidente da casa, Rodrigo Pacheco, a não pautar os projetos de desmonte ambiental.) 

“O projeto tem vícios formais. Não deveria nem ter sido recebido”, disse, pelo telefone, a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). “Ele traz muitos assuntos para além da mineração. Trata de agronegócio, uso do solo, coisas que não deveriam ser tratadas em uma Lei Ordinária, e sim em uma PEC.” Referia-se à Proposta de Emenda à Constituição, que, para ser aprovada, precisa do apoio de três quintos do plenário.

Ex-deputado constituinte e ex-presidente da Funai, o ambientalista Marcio Santilli lembra que a mineração em terras indígenas está prevista na Constituição, mas não da forma como vem sendo pretendida pelo governo federal. “Esse trecho da Constituição de 1988 foi resultado da negociação entre interesses. De um lado, estavam as empresas de mineração, que queriam livre acesso ao solo. De outros, estavam os indígenas, que queriam o usufruto pleno. Regulamentar isso exige mediação, que é algo que não se tem hoje com Centrão e Bolsonaro.” 

 

Quando tramita em regime de urgência, um projeto de lei deixa de passar pelas comissões temáticas, como as de Meio Ambiente, Agricultura e Constituição e Justiça, onde os textos são debatidos e modificados, justamente para evitar uma contestação jurídica depois de aprovados. Do jeito que está, Santilli considera o PL 191 juridicamente impraticável. “Para ficar em um exemplo, ele legaliza o garimpo predatório, que é proibido pelo parágrafo 7 do artigo 231 da Constituição. Se for aprovado, isso com certeza vai ser questionado no Supremo.” Também é grande a chance de o projeto não ter andamento no Senado – a exemplo do que tem ocorrido com as demais propostas de desmonte ambiental –, ainda mais num ano de eleição presidencial. Santilli acredita, portanto, que a estratégia de Lira é não só política, mas também simbólica: um recado aos garimpeiros de que, no que depender do poder em Brasília, liberou geral. “O PL ficou parado por anos esperando o beijo do príncipe. Aí, de repente, o Lira faz esse encaminhamento totalmente anômalo. Claro que um projeto desses sinaliza um ‘Vamo nessa!’ pra mineração ilegal.”

Depois de conseguir aprovar a urgência do PL 191, Arthur Lira avisou que instalaria um Grupo de Trabalho com vinte deputados – treze da situação e sete da oposição – para analisar o texto antes que vá a votação. A medida destina-se a dar uma sensação mínima de que houve respeito aos trâmites parlamentares, o que nem sempre ocorre (o projeto dos agrotóxicos, por exemplo, foi aprovado sem sequer haver um Grupo de Trabalho para discuti-lo). Aos mais próximos, Lira avisou que o projeto seria votado por volta do dia 14 de abril.

Até agora, no entanto, o Grupo de Trabalho ainda não foi criado. Joenia Wapichana acredita que Lira preferiu esperar pelo fim da janela partidária, que terminou no último dia 2 de abril, para entender o novo desenho da Câmara antes de escalar os deputados que integrarão o grupo. Já o deputado Nilto Tatto (PT-SP) acha que Lira pode apensar o PL 191 ao Marco Geral da Mineração, que também vem sendo discutido na Câmara, diluindo o texto em um projeto maior: “Acho que ele sentiu o impacto da repercussão negativa.” 

 

Seja qual for a razão, fato é que o PL 191 não mudou apenas a posição dos indígenas da aldeia Gorotire – atiçou, inclusive, as grandes mineradoras (ou seja, o poder econômico). Delas, veio uma espécie de fogo amigo, que já se fazia anunciar desde dois anos atrás, quando a Vale buscou a Agência Nacional de Mineração (ANM) para protocolar a desistência de 89 projetos que mantinha ou pretendia manter em terras indígenas (pela atual legislação, a prática é possível desde que haja um instrumento chamado Consentimento Livre, Prévio e Informado por parte dos indígenas afetados). Na época, a Vale achou que era melhor cair fora do que entrar num vespeiro de garimpar em área indígena. Agora, foi a vez de o próprio Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) se colocar abertamente contra o projeto.

Representante de 127 empresas – entre elas gigantes como a Vale, a Anglo American e a Alcoa –, o Ibram é uma espécie de CBF das empresas mineradoras. Em 2020, o então presidente do instituto, Flávio Penido, havia publicado um artigo na Folha de S.Paulo dizendo que a iniciativa do PL 191 era “adequada” e deveria “ser apoiada pelos brasileiros”. Mas, neste ano, o Ibram passou a ser presidido pelo ex-deputado federal Raul Jungmann, que ocupou cargo de ministro nos governos Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer. Experiente, Jungmann deu ao instituto um tom mais diplomático. É um reposicionamento necessário numa época em que, para obter financiamento, as empresas precisam respeitar – ou ao menos parecer respeitar – o meio ambiente. 

Em março, quinze dias depois de aprovada a urgência do PL 191, Jungmann esteve na residência oficial do presidente da Câmara, em Brasília, para conversar com Arthur Lira. “Fui colega do Arthur de Câmara. Falei que estava lá em nome do Ibram, e repeti que o posicionamento do setor era contrário ao projeto por três motivos: ele não incorpora a escuta plena e os direitos dos povos originários; ele não contempla devidamente o fato de que garimpo ilegal é caso de cadeia; e ele vai contra a preservação da Amazônia, enquanto o setor da mineração quer a floresta de pé.” De acordo com Jungmann, Lira não pareceu mostrar muito apego ao projeto. “Ele disse assim: ‘Não tenho compromisso com o conteúdo, mas tenho pressão de bancada. O que vocês quiserem trazer será bem-vindo.’” Procurado pela piauí, Arthur Lira respondeu, por meio de sua assessoria, que não trabalha com prazo para a criação do Grupo de Trabalho.

Em tempo: apesar de ter retirado os requerimentos em terras indígenas, a Vale continua praticando a mineração nos arredores delas, como no caso da TI Xikrin, no Pará – o que é permitido pela legislação, embora provoque um impacto ambiental igualmente considerável. Procurada pela piauí, a Vale disse que sua operação fica a 10 km da Terra Indígena Xikrin: “O relacionamento com os Xikrin está sendo construído há quarenta anos e a empresa reconhece, respeita e valoriza a cultura desse povo, atuando para uma visão comum de sustentabilidade para a região.” 

O jornalista Maurício Angelo, que coordena o site Observatório da Mineração, explicou: “A Vale fica disputando com a Petrobras quem bate mais recorde de lucro. Não precisa se desgastar com esse tipo de PL agora.”

        

Os povos Munduruku e Kayapó, do Pará, e Yanomami, de Roraima, são os mais afetados pelo garimpo desde que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, em 2019. Em dezembro do ano passado, 25 representantes dos três povos foram a Brasília, onde se reuniram em um hotel-fazenda, para criar a Aliança em Defesa dos Territórios. “Até aquele momento, cada um lutava em seu próprio território”, explicou a jornalista Maria Fernanda Ribeiro, que coordena a comunicação do grupo. “A gente quis tirar o foco de pessoas como a Alessandra Munduruku, o Davi Kopenawa Yanomami e a Tuire Kayapó para mostrar que existe um grupo maior, coeso, que luta pela mesma causa.” Já naquela reunião falou-se da necessidade de conquistar os Kayapó da aldeia Gorotire. O movimento acabaria ocorrendo de dentro para fora, por iniciativa dos próprios Gorotire, após a repercussão causada pelo PL 191. 

Os Gorotire devem enviar ao menos 35 pessoas da aldeia para o Acampamento Terra Livre, o mais importante encontro político de povos indígenas, que ocorrerá em Brasília de hoje a 14 de abril. “Lá a gente vai conversar e entender por que eles mudaram de ideia”, disse Doto Takak-Ire, do Instituto Kabu. “Já me adiantaram que se sentem enganados. Esse grupo chegou a ir pra Brasília tirar foto com Bolsonaro.”

Doto Takak-Ire disse que os Gorotire têm esperança de trocar o dinheiro do garimpo pelo do crédito de carbono – o que já ocorre em algumas aldeias Kayapó. “Mas não é um processo fácil, ainda mais porque eles mesmos já acabaram com a floresta.” Haverá resistência. O senador Zequinha Marinho, principal interlocutor do garimpo no Congresso, também deve encontrar os Gorotire em Brasília.

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