Desarticulação sanitária global perante a nova varíola

Quantidade de vacinas disponíveis é irrisória – e não há mobilização para produzi-las. Um único país (os EUA) concentra quase todas as doses. E mesmo lá, desarticulação do sistema público bloqueia distribuição eficaz

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Por sorte, a varíola dos macacos parece ter, até o momento, capacidade de contágio alta, mas letalidade baixa.  São 27 mil casos e 11 mortes no mundo até agora – uma delas no Brasil. Pois desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) apontou a doença como emergência sanitária global, em 22 de julho, não cessaram de se manifestar os sinais de descoordenação no combate a ela. O problema principal situa-se na produção e distribuição das vacinas. Tem como fontes a desigualdade e a mercantilização, já verificadas na pandemia de covid-19. A produção dos imunizantes está concentrada em poucas empresas. Faltam ações capazes de levar as doses às populações que mais necessitam. Os países ricos fazem compras maciças. Mas têm dificuldade de aplicar as vacinas, devido ao desgaste em seus sistemas públicos de Saúde.

Matéria publicada há dias, pela revista Wired, mostrou como faltam, num mundo em teoria globalizado, ações coordenadas contra problemas sanitários que não têm fronteiras. O cenário parece patético. Somente um laboratório – o dinamarquês Bavarian Nordic – está produzindo as vacinas. Mas a quantidade é escassa e só uma pequena parte está em condições reais de ser aplicada. São 16 milhões de doses disponíveis pelo mundo (suficientes para 0,5% da população). A empresa anunciou, há algumas semanas, que sua produção estava suspensa, pois norteou seus projetos para a fabricação de outros imunizantes. Com a declaração do estado de emergência global pela OMS, resolveu retomar a produção no último trimestre. Na melhor das hipóteses, serão mais 6 meses até que novos lotes fiquem disponíveis.

A  esmagadora maioria da produção disponível foi açambarcada pelos EUA, que fizeram valer seu poder de compra. A própria Europa aplicou pouco mais de 27 mil doses. O Brasil assegurou 50 mil (suficientes para 0,25% da população), graças à OPAS, braço do continente americano da OMS. No entanto, teremos a fórmula oferecida em enormes frascos. Após chegar ao Brasil, ela precisará ser envasada e armazenada adequadamente, antes de chegar aos postos de saúde.

E nos próprios Estados Unidos, a precariedade do sistema sanitário público torna a aplicação das doses disponíveis lenta e problemática. Há conflitos entre as várias esferas de governo.  O New York Times relata que “as autoridades estaduais devem determinar quando e como distribuir as doses e rastreá-las manualmente. É um processo meticuloso, principalmente em grandes estados, para o qual a maioria dos departamentos de saúde não tem nem pessoal nem recursos para contratar novos trabalhadores”.

A matéria frisa que tal situação se deve a um histórico de desfinanciamento da saúde pública. De quebra, a estrutura de saúde ainda não se recuperou do desgaste provocado pela pandemia de covid. Foram mais de 1 milhão de mortes na nação mais rica do mundo. “Todas as partes do sistema estão estressadas, estão realmente sobrecarregadas. Não é de admirar que as pessoas estejam frustradas em todos os níveis”, diz a doutora Anne Zink, presidente da Associação de Agentes de Saúde Estaduais e Territoriais à matéria.

Os EUA possuem cinco grandes sítios de armazenamento das vacinas. A partir deles, faz-se a distribuição aos locais de destino. Autoridades federais dizem ter enviado a estados 600 mil doses. No entanto, remessas que deveriam ir para um estado aparecem em outros, para depois reaparecerem num terceiro. Não há clareza a respeito de quantas doses cada estado receberá e a aplicação caminha a conta-gotas. A consequência é que o país vacinou muito menos pessoas do que seria possível. 

Os riscos de explosão da doença – sobre a qual ainda falta conhecimento profundo – não estão afastados. A saída óbvia seria que órgãos internacionais estivessem preparados para identificar e combater as ameaças sanitárias em todo o mundo – mas o orçamento da OMS é irrisório (poucos bilhões de dólares por ano). A globalização precisa deixar de ser um território em que pesam apenas os interesses do grande poder econômico. Enquanto isso não é possível, espera-se que  o Brasil novamente observe o que se fez de errado pelo mundo e coordene uma imunização eficaz – o que deverá estar a cargo do governo que assumirá o país em 2023.

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