Quem foram os trabalhadores da saúde mortos por covid

Pesquisa revela a relação entre precarização do trabalho e óbitos entre esses profissionais, durante a pandemia. Brasil perdeu 4,5 mil deles. Oito em cada dez eram mulheres. 66% não tinham contrato de trabalho. Quanto menor o salário, maior o risco

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Um levantamento recente da federação sindical Public Services International (PSI), em cooperação com a ONU, revelou que 4.500 profissionais da saúde pública e privada morreram de covid-19 no Brasil entre março de 2020 e dezembro de 2021 – mesmo período em que o governo negou a doença, dificultou o acesso a recursos e atrasou o quanto pôde a compra de vacinas.  

O relatório colocou o Brasil entre os países com piores desempenhos durante a pandemia devido às políticas de seus governos, ao lado do Zimbábue, Paquistão e Tunísia, com destaque pela abordagem negacionista do governo de Jair Bolsonaro. Na época, noticiários por todo o mundo denunciaram a demora na aquisição de equipamentos e insumos por parte do governo brasileiro – situação que culminou na crise do oxigênio no Amazonas, quando pacientes passaram a falecer nas ruas devido à falta de postos nos hospitais e a falta de cilindros de oxigênio. 

Mas os dados trouxeram também outra análise inédita: a relação entre gênero, precarização do trabalho e a maior incidência de óbitos. Segundo a pesquisa, dois terços dos profissionais que faleceram pela doença no período indicado não tinham contratos formais de trabalho; 8 em cada 10 eram mulheres. Entre as ocupações dos profissionais, o impacto da doença foi maior naquelas com os menores salários e mais próximas à linha de frente: auxiliares e técnicos de enfermagem (70%) morreram proporcionalmente mais do que enfermeiros (25%), e estes proporcionalmente mais do que os médicos (5%), o que pode indicar que as relações de trabalho foram um fator decisivo para as perdas na pandemia. Foram 1.184 enfermeiros mortos, o que pode ter impactado diretamente no atendimento de 21.300 pacientes, já que, pelas regras do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), cada enfermeiro atende até 18 pacientes e cada atendente, 9 doentes. Em Manaus, por exemplo, cada enfermeiro atendeu 40 pacientes com o auxílio de dois atendentes. 

“Um trabalhador sem contrato formal de trabalho se sujeita mais ao risco. Na falta de equipamentos de proteção individual (EPI), por exemplo, não vai ser este trabalhador que vai reclamar, exigir o seu direito e de outros colegas de ir ao trabalho apenas se lhes fornecerem condições seguras, ainda mais sendo um trabalhador impossibilitado de se sindicalizar” afirmou ao Outra Saúde Marcelo Netto, coordenador da Public Services International em Genebra, Suíça. Em uma outra pesquisa realizada pelo PSI em 2020, com cerca de 3 mil trabalhadores da saúde, 63% diziam não ter EPIs suficientes. Segundo ele, é inegável que a informalidade tem relação com o maior número de óbitos entre trabalhadores, ainda que, no caso da covid-19, a estratificação da categoria seja o principal fator. “Morreram mais aqueles que estavam mais próximos dos pacientes, como técnicos e auxiliares de enfermagem.”

“Isso representa uma triste ironia em relação ao mantra que somos levados a acreditar: ‘maior a responsabilidade, maior o salário’”. Na prática, segundo Netto, a afirmação acaba por ser uma inverdade que tem impacto sobre a estratificação dos salários do piso de enfermagem, inversamente contrários ao risco ao qual esses profissionais são expostos. Mulheres ocupam em maior número os postos com rendas inferiores na saúde, de técnicas e auxiliares de enfermagem, o que explica a maior mortalidade entre elas. “Eram essas profissionais que estavam sempre lá, ao lado de quem sofria com a doença, da triagem até a morte de alguns”, afirma Netto, que destaca que quase a metade dessas mulheres (47%) eram pretas e pardas. 

“Faltaram equipamentos de proteção, oxigênio, vacinas, medicamentos e sobraram mensagens falsas e desaforadas do governo brasileiro sobre a covid-19, chocando o mundo. E até hoje os profissionais da linha de frente seguem desvalorizados no Brasil”, afirmou Rosa Pavanelli, secretária-geral da PSI e integrante da Comissão de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Emprego em Saúde e Crescimento Econômico. 

“Todos esperávamos que os aplausos aos trabalhadores da saúde viessem acompanhados por melhores salários e condições de trabalho. No lugar disso, testemunhamos o impasse na aplicação da lei do piso salarial de enfermagem, que, aliás, é uma luta de anos, anterior à covid”, lamenta Marcelo Netto. O Public Services International manifestou-se  em relação ao piso da enfermagem, lamentando a sua “não implementação efetiva” no Brasil – no momento interrompida pelo Supremo Tribunal Federal. Netto aponta que a não-valorização desses profissionais ocorreu também quando Bolsonaro barrou a Lei 14.128/2021, já aprovada no Congresso, que previa a indenização de profissionais da saúde incapacitados de forma permanente após contrair covid-19 ou de seus dependentes, nos casos em que houve morte pela doença. “Algo que, felizmente, o colegiado do STF julgou improcedente por unanimidade no último dia 21 de setembro”, lamenta. 

De acordo com a lei do piso aprovada pelo Congresso, o salário de um enfermeiro deve ser de R$ 4.750,00, de um técnico, R$ 3.325,00, e de auxiliares de enfermagem e parteiras, R$ 2.375,00. Depois, o desafio será garantir o reajuste anual automático pelo índice da inflação dos salários, vetado por Bolsonaro. “Paralelamente a isso, temos que envolver a sociedade para que ela pressione os governos a encontrarem formas para melhorar o acesso à saúde, a despeito do ‘teto de gastos’ que congelou os investimentos na área até 2037”, conclui Netto. 

A pesquisa concluiu que mortes poderiam ter sido evitadas se houvesse empenho governamental, uma vez que, quando o Brasil finalmente avançou na vacinação prioritária dos profissionais de saúde, a mortalidade entre eles caiu mais rápido do que na população em geral – que demorou mais alguns meses para receber a primeira dose da vacina. 

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