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Três filmes para a Quaresma

Se de outras culturas chega o chamamento a aprender a viver as pequenas e grandes mortes da nossa vida, nós que amamos o cinema sentimos a necessidade e a beleza de reconhecer sem medos os sinais do nosso acreditar na vida dos outros, na alteridade de outras culturas, e sentirmo-nos parte de uma única grande humanidade.

Toda a experiência em sala torna-se partilha. A atenção deve ser colocada na pergunta de fundo que conduz à decisão: que motivação a orienta? Que sentimentos e emoções? E assim por diante até se descer à profundidade da própria vida. Neste trabalho interior experimentam-se o fascínio e o esforço da adesão a um Amor que chama e liberta.

 

Argentina, 1985

No percurso de reflexão da Quaresma, o tema da escuta, da escuta com humildade, pode ser encontrado, a nível cinematográfico, no belíssimo “Argentina, 1985” (2022, Prime Video), dirigido por Santiago Mitre, narrativa intensa no género “thriller – legal drama”, uma obra que nos ajuda a voltar a percorrer uma página sofrida da história da Argentina, alargando o campo da reflexão ao valor da memória e à necessidade de defender o perímetro da democracia da vertigem autoritária.

Em particular, o tema da escuta liga-se à figura do protagonista, o procurador Julio Strassera, que durante anos preferiu ignorar rumores e sinuosidades do sistema político do seu país. Mas ao aproximar-se das muitas vítimas de violência e abusos, destapando o drama dos desaparecidos, Strassera já não consegue nem quer continuar a esconder-se na indiferença: comanda assim uma batalha para dar voz e justiça aos oprimidos. Faz seus os sofrimentos dos últimos, abrindo o caminho à esperança de mudança, individual e coletiva.

Entre o fim de 1984 e o início de 1985, em Buenos Aires, começa o processo contra os crimes cometidos durante a vigência no poder do general Jorge Rafael Videla, com a acusação ao ex-ditador e a altos responsáveis das forças armadas. A acusação foi chefiada em tribunal pelo procurador Julio Strassera e pelo seu vice, Luis Moreno Ocampo, assessorados por uma equipa de jovens profissionais que não se deixaram intimidar pelas contínuas ameaças.

Escrito pelo próprio Mitre com Mariano Llinás, “Argentina, 1985” é um filme que tem a coragem de explorar o trauma social da ditadura na Argentina, as repetidas atrocidades cometidas pelos militares. É o drama dos desaparecidos, uma fratura que nunca se recompôs nem sanou no país. «Recordo ainda o dia – sublinha Mitre – em que Strassera formulou o ato de acusação: o boato da sala do tribunal, a emoção dos meus pais, as ruas finalmente capazes de festejar algo que não fosse um jogo de futebol, a ideia de justiça como um ato de cura.»

Movendo-se no género do “courtroom drama”, do drama judicial, mas pontuado por uma incomum (mas conseguida) marca de ironia, o filme maneja com meticulosidade e “pathos” crescente um acontecimento histórico do país – pela primeira vez num filme –, acontecimento que de facto abre decididamente o caminho para o processo democrático. O argumento e a realização extraem consistência e eficácia da interpretação do elenco, a começar por Ricardo Darín, que molda com mester e classe o procurador Strassera. Oferece uma performance maiúscula, que deixa marca.

“Argentina, 1985”, distinguido com o prémio católico internacional atribuído pela SIGNIS, além do Globo de Ouro como melhor filme internacional, além de candidato aos Óscares pela mesma categoria, tem como vocação a salvaguarda da memória civil, e faz-se portador de uma poderosa mensagem de confiança para o futuro, sobretudo para as gerações jovens. Adapta-se a debates.










Viver

Uma das surpresas da temporada de 2022-23 é o drama existencial “Living”, de Oliver Hermanus, luminosa poesia social centrada no repensamento de si, no percurso de reconciliação e renascimento na proximidade da morte. Uma obra que recorda o estilo narrativo de Uberto Pasolini, o seu intenso “Still life” (2013) como o mais recente “Nowhere special” (2020).

“Viver” foi candidato aos Óscares de 2023 para a melhor interpretação masculina (Bill Nighy) e para o melhor argumento adaptado (Kazuo Ishiguro, prémio Nobel). A obra é a adaptação britânica do clássico japonês de Akira Kurosawa, “Viver”, de 1952.

Londres, 1953. Mr. Williams é um empregado municipal, responsável pelo gabinete para a concessão de utilização de bens públicos, com uma acentuada tendência a adiar o que considera mais complexo. Taciturno e metódico, viúvo há anos, quando descobre que tem um cancro no estômago que lhe deixa poucos meses de vida, decide experimentar coisas novas, pequenos prazeres em que nunca tinha sequer pensado, e, sobretudo, muda a sua perspetiva em relação ao trabalho.

Com uma tenacidade e uma paixão para ele insuspeitas, leva por diante em primeira pessoa o requerimento de requalificação de um campo de jogos em desuso apresentada por um grupo de mães, e é bem sucedido: as crianças terão o seu parque.

O mediador com o espetador é um jovem recém-empregado, Peter Wakeling, que, desde o primeiro encontro na estação de comboios que diariamente o conduz a ele e aos seus colegas à “City” até ao epílogo, revela aos poucos a personalidade e a mudança de um homem tranquilo, Mr. Williams, cuja única aspiração desde criança era a de se tornar um “gentleman” (cavalheiro).

Como no belíssimo “Still life”, em que um empregado da administração londrina se aplica pelos invisíveis, pelos últimos, levando um pouco de humanidade ao interior das rígidas malhas da burocracia, “Viver” explora a mudança de rota interior de um homem na Inglaterra do segundo pós-guerra.

Mr. Williams é um burocrata retíssimo, mas endurecido pela vida. A burocracia, com as suas lentidões, acabou por o empobrecer na alma, fazendo-o arrastar-se de maneira cansada e repetitiva.

Quando a doença irrompe na sua vida, recordando-lhe que o tempo não é ilimitado, o homem experimenta primeiro o caos da desorientação, depois a necessidade de recentrar-se, de dar sentido ao tempo que resta. Compreende que a vida só encontra sentido na partilha, na experiência do Nós, e por isso abandona a sua inflexível distância profissional e empenha-se para pôr ordem na administração pública, procurando escutar os pedidos dos mais humildes, os apelos dos esquecidos.

Descobrindo-se frágil, o protagonista põe de parte o burocrata e procura fazer da sua vida, do seu profissionalismo, um dom para o próximo: aprende a fazer o bem, a agir como um bom samaritano; ou melhor, impele a administração municipal a fazer realmente o seu dever, a fazer serviço público, dando assistência, antes de todos, aos mais desafortunados.

Elegante e melancólico, “Viver” é uma obra eminentemente dirigida e interpretada, que com distinção enfrenta o tema do viver e do morrer. O realizador é hábil na valorização dos pequenos detalhes, entre diálogos, enquadramentos, guarda-roupa e ambientação (são soberbas as cenas entre colegas, entre burocratas, nas carruagens dos comboios como nos gabinetes públicos).

Além da interpretação delicada e pungente de Bill Nighy, são de recordar os atores secundários Aimee Lou Wood, Alex Sharp e Tom Burke, que cinzelam com desvelo os personagens.

A imagem de Mr. Williams, sentado no baloiço, sozinho, no pequeno parque de jogos, sob uma chuva subtil, enquanto sussurra a si mesmo «agora lembro-me o que quer dizer estar vivo», acompanhará o espetador durante muito tempo. Uma obra esmerada e comovente, que deixa marca. Poética e adaptada a debates.










Um sonho em Paris

Poderá uma comédia com traços sentimentais aproximar-se ao momento da Páscoa? A resposta é afirmativa, considerando que o filme se desenvolve como uma conto social de bons sentimentos capaz de pôr em campos temas universais, mas também de dolorosa atualidade: a espera e a elaboração do luto, o voltar a relacionar-se com a vida, o recomeçar abrindo-se ao encontro com o outro, dando espaço primeiro ao Nós do que ao Eu.

Tudo isto é “Um sonho em Paris” (“Mrs. Harris goes to Paris”), comédia britânica dirigida por Anthony Fabian, adaptação do romance de Paul Gallico, de 1958, e interpretado com eficácia por Lesley Manville.

Na Londres do final dos anos 50, Ada Harris vive só, trabalhando nas limpezas. O marido desapareceu na guerra, mas ela não se rende e mantém no coração a esperança de o ver regressar. O dinheiro, porém, é escasso, e a mulher luta como pode para sobreviver.

Um dia, em casa de uma cliente, vê um belíssimo vestido de noite assinado Christian Dior, e enamora-se dele a tal ponto que, juntando todo o seu dinheiro até ao último cêntimo, e ajudada por um golpe de sorte, um «sinal do Céu», como o define, consegue partir para Paris, destino Casa Christian Dior. Aí terá de se haver com o snobismo gélido da diretora do ateliê e de algumas clientes ricas e obtusas, mas a sua alma gentil, a generosidade, a disponibilidade para os outros e, naturalmente, a sua determinação abrir-lhe-ão todas as portas. Ada regressará a Londres com o seu “tesouro”; mas a vida saberá surpreende-la mais uma vez.

A figura de Mrs. Harris incarna bem a reflexão para a Quaresma de 2023, o tema da expetativa com esperançosa confiança: é uma mulher ferida pela vida, que ficou só e com pouco dinheiro. Mas isso não a faz abdicar da vida, antes sonha com as suas possibilidades. Arrebatada pela moda de Christian Dior, mas, vendo bem, pelo desejo de dar um abanão à sua pardacenta existência, põe-se a caminho de Paris, abrindo a alma e o coração ao encontro com o outro.

Com cada pessoa que encontra no seu itinerário, desde sem-abrigo a pomposos cavalheiros, Mrs. Harris nunca muda de atitude: é sempre gentil e acolhedora, prodigando-se com coragem pelos outros. Em particular, Mrs. Harris torna-se o paradigma de todos os “invisíveis” que, com simplicidade e dedicação, vivem do seu trabalho; desconhecida, negligenciada, para não dizer desprezada, nunca se deixa levar pelo rancor. Num mundo de falsas aparências, Mrs. Harris brilha pela sua humanidade e dignidade.

Pouco importa se a narrativa, em algumas passagens, se abandone a escorregadelas melosas ou reviravoltas fantasiosas, porque no conjunto o filme oferece uma reflexão de sentido sobre a sociedade, sobre o viver em chave solidária e positiva. Uma obra que olha para os últimos, narrando-os com doçura.

Realizado brilhantemente, fortalecido por um argumento bem calibrado e apoiando-se em excelentes interpretações, “Um sonho em Paris” é uma comédia luminosa e fruível, uma fábula amável sobre o valor da amizade e sobre a perseverança na busca de realizar os sonhos pessoais. À semelhança dos filmes anteriores, é próprio para debates.








 

In Comissione Nazionale Valutazione Film della Conferenza Episcopale Italiana
Edição / trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: maxxyustas/Bigstock.com
Publicado em 08.10.2023

 

 
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